Harry Potter e o Chapéu de Machado de Assis

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Autor: LVX

Paralelos Com Portugal

J.K Rowling, escritora de Harry Potter, foi em algum grau influenciada pela cultura portuguesa, principalmente pela escrita e arquitetura. Ainda, seu contato com a língua deve tê-la trazido ao encontro de Machado de Assis, como se verá a seguir.

Sabe-se que, em um período de sua vida, a autora mudou-se para Porto, Portugal. Não se estranha, portanto, que se tenha inspirado em ideias locais e, de forma geral, por escritores de língua portuguesa.

Por exemplo, o traje de universitários lembra a dos bruxos na série de livros, assim como o capote e capelo das mulheres da Ilha de Faial e São Miguel, Açores:

Mulheres de Faial e São Miguel - Ilha de Açores
Mulheres de Faial e São Miguel - Ilha de Açores
Estudante de Coimbra - Século XVIII
Estudante de Coimbra - Século XVIII

Chama atenção também a livraria Lello, na cidade do Porto, cuja arquitetura pode ter servido de inspiração para alguns cenários dos livros de Harry Potter.

Mas essas relações servem apenas para reforçar o ponto de que Machado de Assis, discutivelmente o maior escritor brasileiro, também a influenciou, e em uma questão fulcral da série: a escolha da varinha no beco diagonal e da casa de Hogwarts pelo chapéu seletor.

Paralelos Com Machado de Assis

Machado de Assim publicou em 1883 um conto chamado “Capítulo dos Chapéus”, que posteriormente esteve na sua coletânea de contos “Histórias sem data”.

A história conta um dia em que Mariana, ao ver seu marido Conrado Seabra, advogado, desdenha de seu chapéu que lhe parecia menos imponente diante de outros com os quais ele conversara.

Não digo que seja feio; mas é cá para fora, para andar na vizinhança, à tarde ou à noite, mas na cidade, um advogado, não me parece que…

Mariana pede-lhe para que troque de chapéu, ao que ele reluta com troça, e depois com metafísica:

A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem mutilação. E uma questão profunda que ainda não ocorreu a ninguém. Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou, para exemplificar bibliograficamente, desde Laplace… Você nunca leu Laplace? desde Laplace e a Mecânica celeste até Darwin e o seu curioso livro das Minhocas, e, entretanto, não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá-lo por todos os lados. Ninguém advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu escreva uma memória a este respeito. São nove horas e três quartos; não tenho tempo de dizer mais nada; mas você reflita consigo, e verá… Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu…

E da mesma forma que cada homem é complemento do seu chapéu, também é o bruxo complemento da varinha. Harry, quando foi na loja do Ollivander no beco diagonal, teve de testar várias varinhas, mas apenas uma o encontrou. O dono da loja diz:

It’s really the wand that chooses the wizard, of course. […] The wand chooses the wizard, remember…1

Chama atenção também a plataforma nove e três quartos2 (934)(9\frac{3}{4}) que Harry usa para chegar ao trem, valor que é o horário em que o bacharel enuncia sua filosofia.

Assim, parece que a autora se inspirou no capítulo dos chapéus, havendo concordância entre a sua história e a do bruxo do Cosme Velho em ao menos três pontos:

  • O chapéu do Machado, que é menos complemento do homem que o homem do chapéu, foi representado na escolha da varinha pelo bruxo (ou do bruxo pela varinha);

  • O chapéu do Machado também foi representado na figura do chapéu seletor, que pode saber mais sobre a pessoa do que ela mesma e designa o seu futuro nas casas de Hogwarts.

  • O valor de 9349\frac{3}{4}, que, somado com essas relações apresentadas - além de soar bem - pode ser a dica para reforçar o ponto que, para o leitor atento, aponta para Machado.

Ao fim da história de Machado, depois de passar o dia fora, Mariana, em casa, encontra o marido chegar com outro chapéu, como pedira. Ela, no entanto, convence-se de que muito melhor lhe caía o anterior:

Escuta uma cousa, respondeu ela com uma carícia divina, bota fora esse; antes o outro.


  1. É realmente a varinha que escolhe o bruxo, é claro. […] A varinha escolhe o bruxo, lembre-se…↩︎

  2. Em português, a tradução costuma ser “plataforma nove e meia”.↩︎

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Tags: #j-k-rowling #harry-potter #varinha #machado-de-assis #chapeu

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